Chocolate Quente para a Alma

"Existe uma lógica no Universo e os acontecimentos da nossa vida não são obra do acaso" (Arielle Ford)

sábado, 26 de março de 2016




O Príncipe Feliz - Oscar Wilde

Bem no alto da cidade, numa alta coluna, erguia-se a estátua do príncipe feliz. Era todo coberto de finas folhas de ouro puro, tinha nos olhos duas safiras brilhantes, e um grande rubi vermelho reluzia no cabo de sua espada.
Na verdade era muitissimo admirado.
- É tão belo quanto um cata-vento - observou um dos conselheiros da cidade, que desejava ganhar reputação por ter gosto artistico -; só não é muito útil - acrescentou, temendo que o povo o considerasse pouco prático, o que realmente não era.
- Por que você não pode ser como o princípe feliz? - perguntou uma mãe ao filho que pedia a lua. - O príncipe feliz nunca chora por motivo algum.
- Fico satisfeito que haja alguém no mundo que seja realmente feliz - murmurou um homem desapontado, enquanto fitava a estátua maravilhosa.
Parece mesmo um anjo - disseram as crianças da Escola de Caridade, ao saírem da catedral em seus mantos escarlates e aventais alvos.
- Como sabem? - disse o professor de matemática-, nunca viram um anjo.
-Ah! mas nós vimos, em sonhos - responderam as crianças; e o professor de matemática franziu as sobrancelhas, com semblante muito severo, pois não aprovava que crianças sonhassem.
Uma noite, voou sobre a cidade uma pequena andorinha. Suas companheiras tinham partido para o Egito seis semanas antes, mas ela ficou pra trás porque estava apaixonada pelo mais belo junco. Ela o conheceu no príncipio da primavera, enquanto voava rio abaixo atrás de uma mariposa amarela, e ficou tão atraída por aquela figura esquia, que parou pra falar-lhe.
- Poderei amá-lo? - disse a andorinha, que gostava de ir direto ao assunto, e o junco fez-lhe uma reverência. Então voou ao seu redor, tocando a água com as asas, provocando ondulações prateadas. Era sua maneira de fazer a corte, que durou o verão inteiro.
É uma relação ridícula - chilchearam as outras andorinhas -, ele não tem dinheiro, e tem parentes demais - e na verdade o rio estava bem cheio de juncos. quando veio o outono, voaram para longe.
Depois que partiram, andorinha sentiu-se solitária e começou a cansar-se de seu amado. - Ele é de pouca conversa, e temo que seja galanteador, porque está sempre flertando com a brisa. E, certamente, toda vez que a brisa soprava, o junco fazia as mais graciosas mesuras. - Reconheço que seja caseiro - continuou -, mas adoro viajar, e meu marido, consequentemente, também deveria gostar de viagens.
- Virá comigo? - disse finalmente a ele; mas o junco meneou a cabeça, tão arraigado estava a seu lar.
- Só estava gracejando comigo - disse ela. -Vou para as pirâmides. Adeus! - e se foi.
O dia todo ela voou, e de noite chegou à cidade. - Onde pernoitarei? Espero que a cidade esteja preparada para me abrigar.
Então viu a estátua sobre a alta coluna, e disse:
- Vou me acomodar ali, é um lugar muito bem localizado, com bastante ar fresco. - Assim, pousou entre os pés do príncipe feliz.
- Tenho um aposento de ouro - disse baixinho para si, olhando ao redor, e preparou-se para dormir; mas no momento em que colocava a cabeça sob a asa, uma enorme gota de água caiu sobre ela. - Que estranho! não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão brilhando e, entanto chove. O clima no Norte da Europa é mesmo horrível. O junco gostava de chuva, mas isso era puro egoísmo dele. 
outra gota caiu.
- Qual a utilidade de uma estátua, se não serve para proteger da chuva? Tenho que procurar uma boa chaminé - disse ela, e decidiu ir embora.
Mas antes que abrisse as asas, uma terceira gota caiu, ela levantou os olhos e viu... Ah! o que ela viu?
Os olhos do príncipe feliz estava cheios de lágrimas, e lágrimas corriam em suas faces douradas. Seu rosto era tão belo sob o luar que a pequena Andorinha encheu-se de compaixão.
- Quem é você?  disse ela.
- Sou o príncipe feliz.
Por que está chorando então? - perguntou a andorinha. - Encharcou-me completamente.
-Quando era vivo e tinha um coração humano - respondeu a estátua -, eu não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no Palácio de Sans-Souci, onde à tristeza não é permitido entrar. Durante o dia, brincava com meus companheiros no jardim, e à noite conduzia a dança no grande salão. Em volta do jardim havia um muro muito alto, mas nunca me importei em saber em saber o que existia além dele, pois tudo ao meu redor era tão lindo. Meus cortesãos chamavam-me príncipe feliz, e feliz em verdade eu era, se o prazer é felicidade. Assim vivi e assim morri. E agora que estou morto, colocaram-me aqui tão alto que posso ver a feiúra e toda a miséria de minha cidade e, embora meu coração seja de chumbo, não posso fazer outra coisa senão chorar.
O quê? Ele não é de ouro maciço? - disse a andorinha para si. Era muito educada para fazer comentários pessoais em voz alta.
- Longe - continuou  a estátua com sua voz baixa e musical -, muito longe numa rua estreita, há uma casinha pobre. Uma janela está aberta e vejo uma mulher sentada à mesa. Tem o rosto magro e abatido, e as mãos ásperas, picadas pela agulha, pois é costureira. Está bordando flores-da-paixão num vestido de cetim para a mais adorável dama de honra da rainha vestir no próximo baile da corte. Num leito, no canto do quarto, está deitado seu filho doente.Tem febre, e pede laranjas. A mãe não tem nada para dar-lhe, exceto água do rio, e por isso ele está chorando. Andorinha, andorinha, pequena andorinha, não quer levar-lhe o rubi do cabo de minha espada? Meus pés estão presos a este pedestal e não posso me mover.
- Esperam-me no Egito - disse a andorinha. - Minhas amigas estão voando sobre o Nilo, conversando com as flores de lótus. Em breve vão dormir na tumba do grande rei. O próprio rei está ali, em seu sarcófago coberto de adornos. Está enrolado em linho amarelo e embalsamado com especiarias. Em seu pescoço há um colar de jade verde-pálido, e suas mãos são como folhas secas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por uma noite, e ser minha mensageira? O menino está com tanta sede, e a mãe tão triste...
- Acho que não gosto de meninos - respondeu a Andorinha. - No verão, quando eu estava no rio, havia dois meninos rudes, os filhos do moleiro, que estavam sempre atirando pedras em mim. Nunca me acertaram, é claro; nós andorinhas voamos bem demais para que nos acertem, e venho de uma família famosa pela agilidade; ainda assim, foi um sinal de desrespeito.
Mas o príncipe feliz parecia tão triste que a andorinha se condoeu: 
- Está muito frio aqui, mas ficarei com você por um noite, e serei sua mensageira.
- Muito obrigada, andorinha - disse o príncipe.
Então a andorinha tirou o enorme rubi da espada do príncipe e voou, levando-o no bico por sobre os telhados da cidade.
Passou pela torre da catedral, onde anjos de mármore branco estavam esculpidos. Passou pelo palácio e ouviu o rumor da dança. Uma jovem formosa apareceu na sacada com su namorado.
- Como estão maravilhosas as estrelas - disse ele - e como é maravilhoso o poder do amor!
- Espero que meu vestido fique pronto a tempo a tempo para o baile do Estado - respondeu a jovem. - Mandei que bordassem flores-da-paixão nele, mas as costureiras são tão preguisosas!
A andorinha passou sobre o rio, e viu as lanteranas penduradas nos mastros dos navios. Passou sobre o gueto e viu velhos judeus negociando entre si, pesando dinheiro em balanças de cobre. Finalmente, chegou à casa pobre e espiou. O menino agitava-se febrilmente no leito, e a mãe caíra no sono, tão cansada estava. saltou para dentro e deixou suavemente o grande rubi sobre a mesa, ao lado do dedal. Então voou suavemente em volta do leito, abanando a fronte do menino com as asas.
- Sinto-me refrescar - disse o menino -, acho que estou melhorando - e mergulhou num sono delicioso.
Então a andorinha voltou ao príncipe feliz, e contou-lhe o tinha feito.
- Engraçado - observou ela -, mas agora sinto calor, embora esteja tão frio.
- É porque praticou uma boa ação - disse o príncipe. E a pequena andorinha começou a pensar, adormecendo logo em seguida. Pensar sempre a fez ficar com sono.
Quando o dia raiou, ela voou ao rio e tomou um banho.
- Que fenômeno notável - disse o professor de ornitologia ao passar pela ponte. - Uma andorinha no inverno! -E  escreveu uma longa carta sobre isso no jornal local. Todos a citavam, porque estava cheia de palavras que não compreendiam.
Esta noite parto para o Egito - disse a andorinha, bastante animada com a perspectiva. visitou todos os monumentos públicos, e ficou posada um longo tempo no topo do campanário da igreja. Onde quer que fosse, os pardais aplaudiam, dizendo uns aos outros:
- Que estrangeira distinta! - E ela se divertiu bastante com isso.
Quando a lua surgiu, voltou ao príncipe feliz e disse:
- Tem alguma encomenda para o Egito? Já estou partindo.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo mais um noite?
- Esperam-me no Egito- respondeu a andorinha - Amanhã minhas amigas voarão até a segunda catarata. Os hipopótamos deitam-se ali entre os caniços, e num grande trono de granito está sentado o deus Memnon. Durante a noite ineira ele contempla as estrelas, e quando brilha a estrela da manhã, ele amite um canto de alegria e depois silencia. Ao meio dia os leões vêm à margem das águas para beber. Têm olhos que se parecem com berilos verdes, e seus rugidos são mais estrondosos do que o rugir das cataratas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, longe, no outro lado da cidade, vejo um jovem numa água furtada. Está debruçado sobre uma mesa coberta de papéis, e num copo ao seu lado há um maço de violetas murchas. seu cabelo é castanho e crespo, seus lábios são vermelhos como a romã, e tem olhos grandes e sonhadores. Ele tenta terminar um peça para o diretor do teatro, mas sente muito frio para continuar escrevendo. Não há fogo no fogão, e a fome o enfraqueceu.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha, que no fundo tinha um bom coração. - Devo levar-lhe outro rubi?
- Ai de mim! Não tenho mais rubis - disse o príncipe -; meus olhos são tudo o que me resta. São feitos de safiras preciosas, trazidas da Índia há mil anos. Arranca um delas e leva ao jovem. Ele a venderá ao joalheiro, comprará comida e lenha, e terminará a peça.
- Caro príncipe - disse a andorinha -, não posso fazer isso - e começou a chorar.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe - faça o que lhe ordeno.
Então a andorinha arrancou o olho do príncipe e voou até a água furtada do estudante. Era muito fácil entrar já que havia um buraco no telhado. Arremessou-se através dele e entrou no quarto. O jovem tinha a cabeça enterrada nas mãos, e não viu o bater das asas; quando levantou os olhos, encontrou a bela safira pousada sobre as violetas murchas.
- Começo a ser apreciado. Isto de ve ser de algum adimirador. Agora posso terminar minha peça - gritou, parecendo muito contente.
No dia seguinte, a andorinha foi ao porto. Pousou no mastro de uma grande embarcação e observou os marinheiros puxando caixas enormes do porão do navio. - Upa! - gritavam eles a cada caixa que levantavam.
- Vou para o Egito! - bradou a andorinha, mas ninguém lhe deu atenção, e quando a lua surgiu, voou até o príncipe feliz.
- Vim para dizer-lhe adeus.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por mais um noite?
- É inverno - respondeu - e a neve fria logo vai chegar. No Egito o sol é quente sobre as palmeiras, e os  crocodilos deitam-se na lama e olham preguisoçamente ao redor. Minhas companheiras estão construindo um ninho no templo de Baalbec, e as pombas rosadas as observam, arrulhando entre si. Caro príncipe, tenho que deixá-lo, mas nunca o esquecerei; e na próxima primavera trarei duas lindas jóias para substituir as que doou. O rubi será mais rubro que a rosa vermelha, e a safira tão azul quanto o imenso oceano.
- Na praça logo abaixo - disse o príncipe feliz - há uma pequena vendedora de fósforos. Ela os deixou cair na sarjeta, e estão todos estragados. Seu pai baterá nela se não levar dinheiro para casa, e por isso ela está chorando. Não tem sapatos nem meias, e sua cabecinha está descoberta. arranca meu outro olho e leva-lhe, para que seu pai não a maltrate.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha -, mas não posso arrancar outro olho. Você ficcaria completamente cego.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, faça o que lhe ordeno.
Ela arrancou então o outro olho do príncipe e alçou vôo. Precipitou-se sobre a vendedora de fósforos e deixou cair a jóia na palma de sua mão.
- Que lindo pedacinho de vidro - disse ela, e correu para casa sorrindo.
A andorinha voltou ao príncipe e disse:
- Está cego agora; então ficarei com você para sempre.
- Não, pequena andorinha - disse o príncipe -, deve partir para o Egito.
- Ficarei com você para sempre - disse a andorinha, e adormeceu aos pés do príncipe.
Durante todo o dia seguinte, ficou pousada no ombro do príncipe, e contou-lhe histórias sobre coisas que viu em terras estranhas. falou-lhes sobre íbis vermelhos, que postavam em longas fileiras em margens do Nilo, apanhando peixes dourados com os bicos; sobre a Esfinge, que é tão antiga quanto o próprio mundo, vive no deserto e tudo sabe; sobre os mercadores, que caminham vagarosamente ao lado de seus camelos e levam contas de âmbar nas mãos; sobre o rei das montanhas da Lua, que é negro como o ébano e cultua um imenso cristal;sobre a grande serpente verde, que dorme numa palmeira e tem vinte sacerdotes para alimentá-la com bolos de mel; e sobre os pigmeus que navegam sobre um grande lago em largas folhas e que estão sempre em guerra com as borboletas.
- Querida andorinha - disse o príncipe -, você me conta coisas espantosas, mas mais espantoso é o sofrimento de homens e mulheres. não há mistério maior que a miséria. Voe por sobre minha cidade, pequena andorinha, e conte-me oque vir por lá.
Assim, a andorinha voou sobre a grande cidade e viu ricos divertindo-se em suas residencias luxuosas, enquanto os mendigos sentavam-se em frente aos portões. Voou por becos escuros e  e viu os rostos pálidos das crianças esfaimadas, olhando apaticamente para as ruas sombrias. Sob o arco de um ponte estavam deitados dois meninos, abraçados um ao outro, tentando manter-se aquecidos.
- Temo tanta fome! - diziam os meninos.
- Vocês não podem ficar aqui - gritou o guarda noturno, e eles se retiraram, vagando sob a chuva.
Então a andorinha voltou e contou ao príncipe o que tinha visto.
- Sou coberto de ouro puro - disse o príncipe -, você deve tirá-lo folha por folha, dá-lo aos meus pobres; os vivos sempre acham que ouro pode fazê-los felizes.
Folha após folha de puro ouro a andorinha arrancou, até que o príncipe feliz ficasse fosco e acinzentado. Folha após folha de puro ouro levou aos pobres, e os rostos das crianças tornaram-se mais rosados, e elas riam e brincavam na rua.
- Agora temos pão - gritavam as crianças.
Então veio a neve, e depois da neve, a geada. As ruas pareciam feitas de prata, de tão luminosas e brilhantes; pontas de gelo, longas como adagas de cristal, pendiam dos beirais das casas; todos passavam vestindo casacos de pele, e as crianças usavam gorros escarlate, patinando sobre o gelo.
A pobre andorinha sentia cada vez mais frio, mas não queria deixar o príncipe, pois o amava muito. Apanhava as migalhas à porta do padeiro quando ele não estava olhando, e tentava se aquecer agitando as asas.
Mas por fim sentiu que iria morrer. Mal tinha forças para voar uma vez mais ao ombro do príncipe.
- Adeus, querido príncipe - murmurou -, deixa-me beijar suas mãos?
-Fico contente que vá para o Egito afinal, pequena andorinha -, disse o príncipe. - Ficou muito tempo aqui, mas deve beijar-me os lábios, pois a amo.
- Não é para o Egito que vou - disse a andorinha. - Vou para a casa da morte. A morte é irmã do sono, não é mesmo?
Então beijou o príncipe feliz nos lábios e caiu morta aos seu pés.
Naqule momento, um estranho estlo soou dentro da estátua, como se algo se tivesse quebrado. A verdade é que o coração de chumbo despedaçou-se em dois. Era certamente um geada terrível.
Na manhã seguinte, bem cedo, o prefeito caminhava na praça em companhia dos conselheiros da cidade. Ao passar pela coluna, olhou para a estátua:
- Meu Deus que aspecto miserável tem o príncipe feliz! - disse ele.
- Muito miserável, realmente - disseram os conselheiros da cidade, que sempre concordavam com o prefeito. - Na verdade, é pouco mais que um mendigo!
- Pouco mais que um mendigo - disseram os conselheiros da cidade.
E há até um passáro morto aos seus pés! - continuou o prefeito. - Devemos emitir um decreto que proíba os passáros de morrerem aqui. - E o secretário da cidade anotou a sugestão.
Então, puseram abaixo a estátua do príncipe feliz. - Como já não é belo, já não é mais útil - disse o professor de Arte na universidade.
Assim, fundiram a estátua numa fornalha e o prefeito convocou uma reunião com a corporação, para decidir o que seria feito do metal.
- Naturalmente precisamos ter outra estátua - disse ele -, e será com minha imagem.
- Com miha imagem - disse cada um dos conselheiros da cidade, e começaram a discutir. Da última vez que soube deles, ainda estavam discutindo.
- Que coisa estranha! - disse o contramestre da fundição. - Este coração de chumbo não derrete na fornalha. Vamos jogar fora. - Assim, jogaram-no em um monte de lixo onde estava também a andorinha morta.
-Traz-me as duas coisas mais preciosas da cidade - disse Deus a um de seus anjos; e o anjo trouxe-Lhe o coração de chumbo e o pássaro morto.
- Escolheste muito bem - disse Deus -, pois no jardim do Paraíso este passarinho cantará eternamente, e em minha cidade dourada, o príncipe feliz me louvará.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O reencontro

Ali estavas tu, ao fundo do salão de baile. À tanto tempo não te via. O teu cabelo está mais branco que a última vez que te vi, mas o teu rosto continua com a mesma luminosidade de sempre. Chamei-te para dançar, não hesitas-te sequer. Dançámos como se nunca o tivéssemos deixado de fazer. Rodopiavas como uma pluma e sorrias, sorrias, olhando para mim. Os nossos dedos entrelaçados como da primeira vez que nos encontrámos. Não parámos uma dança sequer. As horas foram passando e, uma atrás de outra, as pessoas foram abandonando o salão. Só estávamos os dois, abraçados, sorrindo um para o outro. A música parou, e o conjunto arrumou tudo e saiu. Apagaram as luzes e nem sequer deram pela nossa presença. Lentamente os nossos olhos foram-se habituando à escuridão. E então percebi...já não tínhamos forma humana, éramos luzinhas que rodopiávamos uma em redor da outra, éramos a neblina que vagueia na noite, éramos almas perdidas que se reencontraram. Quando casámos prometemos amor até que a morte nos separasse, mas foi pura mentira. A morte não nos separou. Juntou-nos novamente num amor eterno.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A Pequena Vendedora de Fósforos

      Fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do ano.
Em meio ao frio e à escuridão uma pobre menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas. Quando saiu de casa trazia chinelos; mas de nada adiantavam, eram chinelos tão grandes para seus pequenos pézinhos, eram os antigos chinelos de sua mãe.
     A menininha os perdera quando escorregara na estrada, onde duas carruagens passaram terrivelmente depressa, sacolejando. Um dos chinelos não mais foi encontrado, e um menino se apoderara do outro e fugira correndo. Depois disso a menininha caminhou de pés nus - já vermelhos e roxos de frio. Dentro de um velho avental carregava alguns fósforos, e um feixinho deles na mão. Ninguém lhe comprara nenhum naquele dia, e ela não ganhara sequer um níquel. Tremendo de frio e fome, lá ia quase de rastos a pobre menina, verdadeira imagem da miséria! Os flocos de neve lhe cobriam os longos cabelos, que lhe caíam sobre o pescoço em lindos cachos; mas agora ela não pensava nisso. Luzes brilhavam em todas as janelas, e enchia o ar um delicioso cheiro de ganso assado, pois era véspera de Ano-Novo.
    Sim: nisso ela pensava! Numa esquina formada por duas casas, uma das quais avançava mais que a outra, a menininha ficou sentada; levantara os pés, mas sentia um frio ainda maior.
Não ousava voltar para casa sem vender sequer um fósforo e, portanto sem levar um único tostão. O pai naturalmente a espancaria e, além disso, em casa fazia frio, pois nada tinham como abrigo, exceto um telhado onde o vento assobiava através das frinchas maiores, tapadas com palha e trapos.
     Suas mãozinhas estavam duras de frio. Ah! bem que um fósforo lhe faria bem, se ela pudesse tirar só um do embrulho, riscá-lo na parede e aquecer as mãos à sua luz! Tirou um: trec! O fósforo lançou faíscas, acendeu-se. Era uma cálida chama luminosa; parecia uma vela pequenina quando ela o abrigou na mão em concha... Que luz maravilhosa!
Com aquela chama acesa a menininha imaginava que estava sentada diante de um grande fogão polido, com lustrosa base de cobre, assim como a coifa. Como o fogo ardia! Como era confortável! Mas a pequenina chama se apagou, o fogão desapareceu, e ficaram-lhe na mão apenas os restos do fósforo queimado. Riscou um segundo fósforo. Ele ardeu, e quando a sua luz caiu em cheio na parede ela se tornou transparente como um véu de gaze, e a menininha pôde enxergar a sala do outro lado. Na mesa se estendia uma toalha branca como a neve e sobre ela havia um brilhante serviço de jantar. O ganso assado fumegava maravilhosamente, recheado de maçãs e ameixas pretas. Ainda mais maravilhoso era ver o ganso saltar da travessa e sair bamboleando em sua direção, com a faca e o garfo espetados no peito!
     Então o fósforo se apagou, deixando à sua frente apenas a parede áspera, úmida e fria.
     Acendeu outro fósforo, e se viu sentada debaixo de uma linda árvore de Natal.
     Era maior e mais enfeitada do que a árvore que tinha visto pela porta de vidro do rico negociante. Milhares de velas ardiam nos verdes ramos, e cartões coloridos, iguais aos que se vêem nas papelarias, estavam voltados para ela. A menininha espichou a mão para os cartões, mas nisso o fósforo apagou-se. As luzes do Natal subiam mais altas. Ela as via como se fossem estrelas no céu: uma delas caiu, formando um longo rastilho de fogo. "Alguém está morrendo", pensou a menininha, pois sua vovozinha, a única pessoa que amara e que agora estava morta, lhe dissera que quando uma estrela cala, uma alma subia para Deus. Ela riscou outro fósforo na parede; ele se acendeu e, à sua luz, a avozinha da menina apareceu clara e luminosa, muito linda e terna.
- Vovó! - exclamou a criança.
- Oh! leva-me contigo! Sei que desaparecerás quando o fósforo se apagar!
Dissipar-te-ás, como as cálidas chamas do fogo, a comida fumegante e a grande e maravilhosa árvore de Natal! E rapidamente acendeu todo o feixe de fósforos, pois queria reter diante da vista sua querida vovó. E os fósforos brilhavam com tanto fulgor que iluminavam mais que a luz do dia. Sua avó nunca lhe parecera grande e tão bela. Tornou a menininha nos braços, e ambas voaram em luminosidade e alegria acima da terra, subindo cada vez mais alto para onde não havia frio nem fome nem preocupações - subindo para Deus. Mas na esquina das duas casas, encostada na parede, ficou sentada a pobre menininha de rosadas faces e boca sorridente, que a morte enregelara na derradeira noite do ano velho. O sol do novo ano se levantou sobre um pequeno cadáver. A criança lá ficou, paralisada, um feixe inteiro de fósforos queimados. - Queria aquecer-se - diziam os passantes. Porém, ninguém imaginava como era belo o que estavam vendo, nem a glória para onde ela se fora com a avó e a felicidade que sentia no dia do Ano Novo.

Hans Christian Andersen

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Anjos

Os anjos aparecem com frequência no Antigo Testamento como os representantes ou os mensageiros de Deus (Génesis, 16:7), uma vez que Deus raramente comunica directamente com a humanidade. os anjos surgem muitas vezes durante as experiências de "quase morte", como guias espirituais, e facilitam o regresso do indivíduo à vida. A popularidade dos anjos na viragem de milénio, no Ocidente, pode ser encarada como um modo que a sociedade progressivamente mais secularizada encontrou de incorporar alguns conceitos religiosos nmuma existência completamente natural. também se constitui como uma oportunidade de representar o céu e a vida depois da morte de um modo quase físico, proporcionando assim uma versão mais simplista de religião aos que começam a manifestar algum cansaço e necessitam de reagir contra a tendência, cada vez mais sofisticada, para se interpretar e desmistificar as crenças religiosas.
(in: Enciclopédia da morte e da arte de morrer - Glennys Howarth e Oliver Leaman)

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O que dizer a alguém que perde um ente querido

Passei na casa mortuária para prestar condolências, pela partida eterna, da mãe de umas senhoras que conheço. Cumprimentei todas as filhas que se encontravam em redor do caixão, com os rostos carregados de tristeza e amargura. Nunca sei o que dizer às pessoas nestas alturas, porque a dor da perda já é tão grande, que o silêncio vale mais que mil palavras de conforto. Mas... disse a uma das filhas, "já estava muito velhinha". a filha começou logo a chorar. que estúpida que fui! se tivesse um buraco, enfiava-me imediatamente nele. porque a nossa mãe é sempre a nossa mãe, por mais velhinha que esteja, a perda custa sempre.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Alma

No Judaísmo, a alma (habitualmente designada em hebraico com neshamah) está ligada ao espírito, ou sopro da vida. o corpo é como a roupagem da alma (shabbat, 152b), sendo que esta viaja entre a terra a o céu durante doze meses até que o corpo esteja inteiramente dissipado (Sabbat, 152b-153a)
O Budismo encara com muita suspeição a noção de alma enquanto entidade persistente com realidade objectiva. muitos budista entendem que o estado da consciência na altura da morte é decicivo na definição do renascimento do indivíduo: se a mente está serena e em paz, então o renascimento é feliz, e vice-versa.
texto retirado de:" Enciclopédia da morte e da arte de morrer" - Glennys Howarth e Oliver Leaman

domingo, 3 de abril de 2011

morrer no hospital ou morrer em casa

as famílias hoje em dia estão mais dispersas. o casal vive com os filhos num local, os pais noutro e os sogros noutro. o trabalho, a escola, ocupam muito tempo, e o tempo para todos se reunirem resume-se a aniversários, páscoa e natal. hà uns anos atrás as famílias viviam todas como uma grande familia. geralmente a mulher não trabalhava fora de casa, ficava em casa a cuidar das crianças e dos idosos. não existiam tantos lares de idosos, porque este ficavam em casa junto da família até morrerem. morriam no seu leito rodeados de toda a família, em paz. tinham, muitas das vezes, tempo para se despedir. hoje em dia, infelizmente cada vez mais se morre no hospital. muitos idosos ficam esquecidos numa Medicina à espera de... vaga no lar?; disponibilidade da família? da morte? ou então morrem numa Unidade de Cuidados Intensivos, muitas das vezes em coma e sem consciência do que lhes está a acontecer, para onde foram tranferidos, com o intuito de prolongar a vida, uma vida sem qualidade. não valia mais terem ido para junto da família e morrer rodeados de amor. mas nem todas as familias estão preparadas para dar aos idosos o amor da despedida.